quinta-feira, 28 de março de 2024

Nobre fúria


Como não ter medo da “escumalha da humanidade”, para usar a certeira formulação de um justamente célebre hino soviético sobre a “força negra fascista”? 

O medo é natural e, tal como a melancolia de esquerda, só se supera com ação coletiva. Por introspeção, ouvir hinos destes pode ajudar a impulsionar a decisão individual de sair à rua e lutar com “nobre fúria”. 

Precisamos mesmo de transferir o medo de baixo para cima, da esquerda para direita, neste país. Não temos dinheiro, mais ainda temos uma tradição de mobilização para mais uma “guerra sagrada”, de recorte tão antifascista quanto patriótico e internacionalista. Nunca se desiste.

Assinale-se


Com a eleição de um terrorista fascista para vice-presidente da Assembleia da República, o 27 de março de 2024 ficará na história como o dia do afastamento irreversível do chamado Partido Social Democrata em relação ao arco constitucional original.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Vazio despovoado


Recupero um excerto de um artigo sobre o “Professor Marcelo”, o escorpião, o que tem máximas responsabilidades nesta confusão, que creio apropriado ao que se passou na AR: 

O teórico político Peter Mair escreveu sobre este “governo do vazio”, sobre o défice de soberania nacional, sem a qual não há democracia. A soberania foi perfurada pela lógica neoliberal da integração europeia. Escreveu também sobre tanta gente sem partidos e tantos partidos sem gente, sobre alternâncias sem alternativas. No meio desta falta de autoridade política democrática, floresce o novo fascismo, gerado pelo neoliberalismo, claro.

Aula aberta


Mark Blyth, economista político e valioso intelectual público, conhecido pelo livro Austeridade: A História de uma Ideia Perigosa entre outros contributos, estará no ISCTE no dia 18 de Abril (17h, Auditório JJ Laginha) para dar uma aula aberta ao público em geral sobre os ganhadores e os perdedores com a inflação. Afinal de contas, esta é sempre e em toda a parte um fenómeno distributivo. Ponham nas vossas agendas.

terça-feira, 26 de março de 2024

Estado da arte


Lembrete. Temos sempre de distinguir entre a nova/velha elite da extrema-direita – Venturas, Nogueiras Pintos, Pintos Pereiras, Marchis, Mithás Ribeiros (todos doutorados, note-se) – e uma massa popular variada, que em certas circunstâncias a pode apoiar. A primeira combate-se sem quartel, a segunda reconquista-se. Está distinção luminosa, oriunda da tradição antifascista, passou, e com distinção, vários testes da história mais negra.

Neste dia triste, é preciso sublinhar a necessidade de fazermos as distinções cruciais, sem as quais estamos perdidos. Por exemplo: povo/elite, democracia/oligarquia, libertação/dominação, socialismo/barbárie.

A luta continua, dias melhores virão.
 

Aproveitar os saldos


Ontem, o INE apresentou também as contas nacionais trimestrais por setor institucional: “O saldo externo da economia fixou-se em 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB) no terceiro e quarto trimestres de 2023, o que representou uma melhoria face a 2022, em que registou um saldo negativo (-0,4% do PIB).” 

O saldo externo é contabilisticamente idêntico ao somatório dos saldos dos setores internos. A contabilidade não nos indica as relações de causalidade, antes fixando os limites do que podemos dizer e chamando a atenção para as interdependências que temos de considerar. Não é pouco. 

Estivemos basicamente a “financiar” o resto do mundo, graças aos serviços de exportação, vulgo turismo. Este modelo extrovertido tem escassa capacidade produtiva e é muito vulnerável. As empresas (sociedades não-financeiras) estão a levar um aperto dos bancos (sociedades financeiras). E as famílias não estão melhor, com o seu saldo tenuemente positivo a ser idêntico ao registado antes da crise financeira, como sugerem os dados do INE projetados no gráfico de Paulo Coimbra

Entretanto, diria que foi por causa da evolução do saldo externo que a poupança do setor público não teve consequências contabilísticas ainda mais negativas e evidentes no desempenho dos restantes setores.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Ortodoxo até dizer chega


À boleia do crescimento nominal da economia, puxado pelos escassamente produtivos turismo e tijolo e pela inflação, “em 2023, o setor das Administrações Públicas (AP) apresentou um saldo positivo (capacidade líquida de financiamento) de 3 194 milhões de euros, correspondente a 1,2% do PIB (-0,3% em 2022)”, informa o INE

Por sua vez, “o saldo primário, correspondente ao saldo global líquido da despesa em juros, foi positivo, tal como em 2022, tendo melhorado 5 mil milhões de euros, para 8 945 milhões de euros.” A despesa com juros cresceu 23,3%, a rubrica com maior crescimento, graças à política de classe do BCE. 

Os saldos são uma variável sobretudo endógena, dependente do andamento da economia e de muitas decisões que não são nossas, incluindo os constrangimentos orçamentais e monetários impostos pela UE e pelo BCE. 

O governo, com a sua escassíssima margem de manobra, fez algumas mudanças para que tudo permanecesse na mesma: o investimento público subiu menos do que o previsto, perpetuando valores no PIB dos mais baixos da UE e mantendo os serviços e equipamentos públicos à míngua, com profissionais justamente insatisfeitos. 

Foram ortodoxos até dizer chega. De facto, as direitas cada vez mais extremas foram as principais beneficiárias de uma política de extremo-centro europeísta. Esta passa, à boleia de intensa propaganda ideológica, por “socialismo”.

domingo, 24 de março de 2024

A esquerda não desiste de compreender

Moldura humana de mais de mil crianças em Fafe

Os resultados da extrema-direita nas eleições legislativas deram origem a uma enxurrada de análises sobre a súbita explosão no nosso um país de um movimento que já tinha alastrado a quase toda a União Europeia. Digo análises, mas uma parte do que se tem escrito está mais no domínio do desabafo. O choque, indignação, desilusão e medo abundam. Escasseia a vontade de compreender o fenómeno e as suas origens
Para muitos que têm refletido sobre o fenómeno da extrema-direita, tudo pode ser arrumado com alguns perfis sociais do suposto eleitor Chega, tido como pobre e ignaro, e uma grande amálgama política no que é um mar de motivações e frustrações. Nas versões mais agressivas, são enxovalhados os que pretendem ensaiar alguma explicação sobre este voto que permita identificar causas para este terremoto ou, pior ainda, manter abertos canais de diálogo com uma parte destas pessoas. Aparentemente, há muitos democratas e até democratas de esquerda que acham que a democracia deve desistir de mais de um milhão de pessoas.
É por isso que, se queremos mesmo vencer a extrema-direita, vamos ter de ser um pouco mais exigentes nas análises. Saber quem são e o que pensam os eleitores do Chega. Perceber quais as circunstâncias e as políticas que permitiram que ideias que sempre existiram na marginalidade política tenham sido tão propagadas e normalizadas num tão curto espaço de tempo.


O resto do artigo pode ser lido no Setenta e Quatro

Haja luz


Visitei ontem o Museu Cargaleiro, em Castelo Branco. O pintor Manuel Cargaleiro fez 97 anos no passado dia 16 de março: “continua a pintar a luz e a viver a cor”. Assinalou os 25 anos do 25 de abril desta bela forma. 

Estávamos em 1999. Lembrei-me que foi o ano da adesão ao euro, com a fixação irremediável da paridade do escudo. Houve um panfleto comunista que antecipou as consequências negativas para a nossa liberdade e para a nossa democracia. 25 anos depois, aqui estamos.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Leituras necessárias


Estavam três grande livros à espera na Almedina do Estádio, em Coimbra, acabados de sair: servem para pensarmos historicamente os desafios políticos que estão para trás e para a frente. Tendo-os já lido em inglês, as traduções parecem competentes, ou não fossem editados por chancelas que dão garantias nesta área. Li o livro de Clara Mattei recentemente e referi-o em crónica no 74. Deixo por aqui o excerto:

Razão tinham os que empunharam cartazes nas manifestações do 25 de Abril onde se podia ler: “um olho no liberal, outro no fascista”. Esta relação entre um certo liberalismo e o fascismo tem tradição, como indica Clara Mattei, historiadora da economia política, num livro importante – The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism –, saído no final do ano passado [2022 e agora editado entre nós].

De facto, ao forjarem as políticas de austeridade, no início dos anos 1920, os economistas liberais não se limitaram a criar as condições objetivas para o fascismo. Em Itália e não só, alguns foram participantes ativos na passagem do fascismo de movimento a regime e outros foram os seus mais ou menos envergonhados apologistas.

Recorrendo a ampla evidência textual, fruto de trabalho de arquivo e do engajamento com obras de economistas relevantes, Mattei indica como a austeridade foi uma reação de classe antidemocrática, movida pelo medo do empoderamento da classe trabalhadora, que requereu todo um trabalho de argumentação económica, articulado com várias formas de violência política estatal.

Ao desenvolver o seu argumento historicamente informado, Mattei fornece uma útil elaboração conceptual das três formas articuladas de que a austeridade se revestiu e reveste. Em primeiro lugar, a austeridade na política orçamental, ou seja, cortes na despesa pública associada ao bem-estar e consolidação de um Estado fiscal regressivo. Em segundo lugar, a austeridade na política monetária, ou seja, políticas deflacionárias, assentes na elevação da taxa de juro. Em terceiro lugar, a austeridade nas relações laborais, ou seja, todo o esforço regulatório para garantir a disciplina e a hierarquia nas relações laborais, para garantir direitos dos patrões e correlativas obrigações dos trabalhadores.

No Primeiro de Maio – não há coincidências em política –, o governo italiano, liderado pela extrema-direita de Giorgia Meloni, anunciou iniciativas liberais: corte nas prestações sociais e alterações regressivas na legislação laboral. Esta é a função da extrema-direita. É tudo brutalmente claro: o poder capitalista instalado quer sempre anular o poder da democracia.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Campanhas


António Costa disse a verdade, mas disse-o num contexto e com um subtexto inadmissíveis. A extrema-direita não é contra a UE hoje em dia. O neoliberalismo agora militarizado que advogam na prática está aí inscrito. A moeda única, o mercado único e a política austeritária tendencialmente única são a base material da sua ascensão, até dada a impotência estrutural da social-democracia.  

quarta-feira, 20 de março de 2024

Ainda os resultados das eleições

É de facto impressionante a quase equivalência entre o aumento do número de votos no Chega e o aumento total de votos entre as legislativas de 2022 e de 2024, que Vicente Ferreira já referiu aqui. Basta fazer contas, seja a que escala for, como assinalou João Maria Jonet, e tornam-se ainda mais nítidas as representações gráficas divulgadas há dias por Pedro Magalhães. Um exercício à escala dos distritos, por exemplo, resulta no seguinte:


De facto, não só em 7 dos 18 distritos a diferença é inferior a mil votos, como são 9 os casos em que o aumento da votação no Chega é superior ao aumento da participação eleitoral em termos globais, sendo que nos distritos de Braga, Guarda, Portalegre, Santarém e Viana do Castelo, a diferença a favor do Chega supera os mil votos. Isto não significa, claro, que o acréscimo de participação eleitoral entre 2022 e 2024 tenha linearmente desembocado no Chega. Mas que a esmagadora maioria do aumento de votos se refletiu na votação neste partido não oferece muitas dúvidas.

Vicente Ferreira já assinalou, no seu post, as razões que ajudam a compreender esta votação inédita, entre nós, num partido de extrema-direita, não fazendo sentido associar os resultados a um ou outro motivo em particular. E vale também a pena, neste âmbito, juntar outras leituras, como a de um texto de Pedro Magalhães de 2019, no Expresso, a par dos artigos recentes de Ricardo Paes Mamede e de José Pacheco Pereira no Público.

Precisamos de guiões


Sara Barros Leitão é uma intelectual pública imprescindível: lê e escreve, interpreta, encena e representa, dirige e é dirigida. 

Assisti ao seu “guião para um país possível” no dia 8 de março, no fim da campanha eleitoral, com os sentidos e os sentimentos mobilizados. Há muito tempo que não tinha uma reação assim a uma peça de teatro: expetativa, surpresa, riso, pensamento, lágrimas, as da alegria e as da tristeza. 

Estava ali o amor a uma democracia intensa, à sua teatralidade, à sua verdade, às suas partes e aos seus apartes; o amor às palavras ditas, aos corpos que as proferem; o amor a um país cujos avanços são os da sua limitada democracia. 

Não sou crítico, fui apenas um espectador entusiasmado da sua peça no Teatrão, em Coimbra, e, já agora, da sua leitura de Maria Velho da Costa no serviço público que dá pelo nome de RTP Play: este seu  iluminismo radical ajuda-nos a ir refletindo, agindo, em tempos sombrios.

terça-feira, 19 de março de 2024

História, com h muito grande e muito pequeno


A história é feita de contradições e de paradoxos brutais, com os quais temos de viver. Por exemplo, em plena necropolítica estalinista, num tempo de crimes, erros e derrotas fatais para o movimento operário, num tempo de escolhas trágicas, a Terceira Internacional faz o seu sétimo congresso em Moscovo e define uma nova linha estratégica, essa sim iluminada. Negrume e luz, negrume e luz ao mesmo tempo, em todo o lado.

Bem sei que o antifascismo histórico tem múltiplas correntes, mas esta é a mais eficaz e é a que vai dar o maior contributo para chegarmos, uma década depois, ao espírito de 1945. Recebi o livro Origens da Estratégia Frentista - O VII Congresso da III Internacional Comunista do meu pai, herança intelectual, tem a sua assinatura, feita trinta anos depois de 1945, um ano depois de 1974. O tempo é habitado por grandes e coletivas cadeias e por pequenas e privadas.

Tenho procurado fazer bom uso dele, está cheio de notas e de sublinhados, dele e meus. Gosto particularmente do discurso de Dimitrov, pontuado de aplausos. Lembrei-o no final do último artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa:

Este artigo está a ser escrito a 27 de janeiro de 2024, setenta e nove anos depois de o principal campo de industrialização da morte nazifascista, em Auschwitz, ter sido libertado pelas valorosas forças da vida soviética. Doze anos antes, a 9 de março de 1933, o comunista búlgaro Georgi Dimitrov foi preso pelos nazis e acusado falsamente de ser um dos autores do incêndio do parlamento alemão, no famoso julgamento de Leipzig, onde se defendeu corajosamente. 

Dois anos depois, em 1935, já em Moscovo, seria eleito secretário-geral da Terceira Internacional no seu famoso sétimo congresso, tornando-se um dos responsáveis pela viragem estratégica antifascista de frentes populares, “enraizadas nos solos pátrios”, reconhecendo que as tradições nacional-populares seriam a melhor bateria política para fazer face aos fascismos. De facto, o inimigo principal foi aí bem identificado, sendo que a poderosa e plástica ideia de nacionalidade lhe teria de ser disputada, o que passava por ter confiança performativa no povo e nas suas tradições de luta. 

Em 1943, em plena batalha de Estalinegrado, um economista polaco de seu nome Michal Kalecki escrevia um breve e penetrante artigo de economia política, que ficaria famoso, sobretudo depois dos anos 1970, e onde afirmou que o combate pelo pleno emprego, pela segurança laboral e logo social, através de uma política económica deliberada, seria a melhor forma de evitar o regresso do fascismo. A História não se repete, mas rima.    

Adenda bibliográfica. Recomendo a leitura de Comunismo e antifascismo: artigos e ensaios, da autoria de João Arsénio Nunes, em especial o artigo publicado na Análise Social: Da política classe contra classe às origens da estratégia antifascista. Devo dizer que este historiador me ensinou muito sobre história do movimento operário e socialista, sobretudo em contexto de interação político-partidária. Ainda hoje, passadas mais de duas décadas, lembro-me frequentemente de algumas das suas formulações lapidares.     

segunda-feira, 18 de março de 2024

Alguma água na fervura dos resultados eleitorais


Uma semana depois das eleições legislativas, este título pode parecer estranho. Embora ainda faltem contar os votos dos emigrantes, com a derrota do PS e o aumento da votação da direita, tudo indica que teremos um governo liderado pelo PSD e apoiado pela IL e pelo CH. Além disso, já há 48 deputados da extrema-direita com lugar garantido no Parlamento nesta legislatura e esse número ainda pode subir. Os programas destes partidos deixam antever uma governação de aprofundamento das desigualdades. É precisamente por isso que os resultados têm de ser lidos com a frieza necessária.

O que é que os resultados nos dizem?

A maior surpresa das eleições foi a enorme afluência às urnas: a taxa de abstenção foi de 33,8%, o valor mais baixo das últimas três décadas. É preciso recuar a 1995 para encontrar uma eleição onde a abstenção fosse tão baixa. A diminuição foi expressiva face às últimas eleições de 2022, em que a taxa de abstenção tinha sido de 48,6% (sendo que ainda falta apurar os votos dos círculos do estrangeiro).

A Aliança Democrática – coligação entre o PSD, o CDS e o PPM – foi a força política com mais votos. Mas a votação que obteve, contando com a Madeira – 29,49% – é inferior à soma das votações de PSD e CDS nas últimas eleições legislativas, em 2022 (30,89%). Ou seja, a AD conseguiu ganhar as eleições com uma percentagem de votos inferior à das últimas, nas quais tinha perdido para um PS com maioria absoluta.

O PS é o partido com a maior quebra: face às eleições de 2022, perdeu cerca de 486 mil votos e passou dos 41,68% obtidos há dois anos, que lhe deram maioria absoluta no parlamento, para 28,66% este ano. Por oposição, o CH foi o partido que mais cresceu, ganhando cerca de 723 mil votos e passou de 7,15% para 18%.

Os dados disponíveis sugerem que o crescimento do CH está associado à diminuição da abstenção: o aumento da taxa de participação foi semelhante ao aumento de votação do partido na maioria dos concelhos. A análise de dinâmicas de transferência de voto entre partidos requer mais dados qualitativos (que só podem ser obtidos através de entrevistas), mas há sinais que apontam para que possa ter havido pessoas que mudaram o seu voto do PS para o CH.

  

O que é que os pode explicar?

Ao longo da última semana, foram várias as tentativas de explicar os resultados eleitorais. Esse trabalho tem de continuar a ser feito, uma vez que ainda estamos longe de saber explicar tudo. Apesar disso, há motivos conjunturais e estruturais que ajudam a explicar a quebra tão expressiva da votação do PS e a ascensão da direita.

O desgaste de oito anos de governação do PS seria o candidato mais óbvio, se não estivéssemos a falar do mesmo partido que, há apenas dois anos, conquistou uma maioria absoluta. É, aliás, nessa maioria absoluta que se encontram fatores conjunturais que devem ter importância neste resultado: a sucessão de demissões nos primeiros meses do governo e a queda do governo por suspeitas de corrupção (independentemente da fragilidade jurídica ou conveniência política dessas suspeitas) ajudaram a reforçar a desconfiança face ao governo.

A popularidade ganha com a gestão da pandemia perdeu-se com a maioria absoluta e o receio do CH já não funcionou a favor do PS desta vez. Pelo contrário, o descontentamento das pessoas face a promessas eternamente adiadas parece ter motivado um voto de protesto. É aqui que entram fatores estruturais: o sub-investimento público sistemático, que caracterizou a governação do PS, descredibilizou a atuação do Estado. A diferença entre o investimento que era prometido no Orçamento do Estado e o que era realmente executado no final do ano foi sempre grande, mas acentuou-se nos dois anos da maioria absoluta. Depois de todas as promessas de que o mundo pós-pandemia seria diferente, os investimentos eternamente adiados parecem ter custado caro.

Nem o PSD, com uma campanha colada a nomes de má memória (Passos Coelho e Cavaco Silva) e uma aproximação ao discurso da extrema-direita em temas como a imigração, nem a IL, que continua a tentar convencer o país de que o choque fiscal não é só para os mais ricos mas só reúne com CEOs, conseguiram mobilizar o descontentamento. Quem ganhou verdadeiramente foi o CH, que cresceu em todos os distritos. E é muito difícil traçar um perfil de um eleitorado tão diverso, que abrange ex-eleitores da direita tradicional, ricos saudosistas da ditadura, mas também muitos excluídos do modelo económico dos últimos anos e boa parte dos jovens.

O que é que falhou à esquerda?

À esquerda, o Bloco ganhou votos e manteve os 4,46% que obteve em 2022, enquanto a CDU perdeu e passou de 4,3% para 3,3%; o Livre cresceu sobretudo nos centros urbanos, ficando com 3,2%. No rescaldo dos resultados eleitorais, houve quem, à esquerda, se apressasse a apontar as culpas aos partidos de esquerda – nomeadamente, ao Bloco e ao PCP – pelo insucesso em captar boa parte do voto de protesto (exemplos aqui e aqui). Os argumentos utilizados variam entre (1) BE e PCP diabolizaram os eleitores do CH em vez de os ouvir; (2) BE e PCP não perceberam (e não quiseram perceber) o descontentamento das pessoas; e (3) BE e PCP tornaram-se obsoletos e, por isso, dispensáveis.

É natural que a frustração dê lugar a reações a quente. Todos estamos desiludidos com o desfecho das eleições e a perspetiva de um governo de direita apoiado (formal ou informalmente) pela extrema-direita é angustiante. No entanto, face a um resultado tão negativo para o conjunto da esquerda, vale mesmo a pena tirar algum tempo para refletir sobre o que se passou, para que o desapontamento natural não nos faça perder de vista aspetos importantes.

O primeiro argumento é o mais frágil. Basta uma rápida pesquisa para encontrar discursos de Mariana Mortágua (aqui) e Paulo Raimundo (aqui) sobre a importância de responder às preocupações de quem se sente desiludido com a governação. Se olharmos para a campanha sem ideias pré-concebidas, o que vemos é que nenhum dos partidos de esquerda “diabolizou” eleitores e, pelo contrário, todos procuraram ir ao encontro destes.

O segundo argumento é mais subjetivo e, por isso, merece mais atenção. Parece basear-se na crença de que os votos seriam facilmente captados pela esquerda se simplesmente ouvisse as preocupações reais das pessoas. É difícil argumentar que os salários, os preços da habitação, a precariedade e o acesso a cuidados de saúde – os temas que tiveram destaque na campanha de BE e PCP – não estejam entre as preocupações da maioria das pessoas. É difícil argumentá-lo sobretudo porque é isso que as pessoas dizem, como mostram alguns inquéritos recentes. Também é difícil argumentar que não houve esforço para transmitir as propostas sobre estes assuntos, tendo em conta as dezenas de deslocações a empresas, locais de trabalho, transportes públicos, ou a participação em greves por melhores condições de trabalho ao longo da campanha, numa escala que nenhum outro partido replicou.

Há várias razões pelas quais a esquerda não é capaz de captar votos entre os descontentes. Há temas de que a esquerda tem falado há vários anos e que nunca mobilizaram uma percentagem tão grande da abstenção. É difícil achar que essa mobilização não ocorreu, também, devido aos temas que o CH abordou de forma mais agressiva – do medo da imigração e da criminalidade à perceção de corrupção generalizada – e às propostas mais sonantes – como a de agravar as penas ou a de atacar direitos dos imigrantes. É preferível que se reconheça que o trabalho que a esquerda tem pela frente neste campo é de longo prazo. É isso que a tendência de todos os outros países da Europa ocidental, à qual Portugal está a chegar agora, sugere.

Há aspetos que contribuem decisivamente para o crescimento da extrema-direita (CH) e da direita ultra-liberal (IL) face aos quais a esquerda não tem capacidade de disputa: o financiamento por parte dos mais ricos e o espaço desproporcional que ocupam nos meios de comunicação. O enviesamento do comentário televisivo, dominado pela direita apesar da sua menor representação eleitoral, já vinha de trás. Como notou Ana Drago, “qualquer partido que ocupasse o tempo mediático que o CH tomou nos últimos quatro anos, ao ser apresentado na comunicação social como o principal polo de protesto, […] duplicava a sua votação”. Apesar de BE e PCP já terem sido os partidos mais votados a seguir a PSD e PSD, nunca um partido de esquerda mereceu este tratamento privilegiado da comunicação social.

A isso juntou-se a aposta em estilos comunicacionais muito mais agressivos, tanto no ataque ao Estado, aos impostos e aos serviços públicos (do lado da IL), como no ataque às minorias (do lado do CH), contando com financiamento dos mais ricos do país. Sendo verdade que a disputa nas redes sociais é feita num campo claramente inclinado, que favorece o discurso de ódio e as mentiras ou teorias da conspiração, também é verdade que a direita apostou de forma bem-sucedida em campos onde a esquerda se atrasou, como o Youtube.

A importância da esquerda

Há aspetos estruturais que também não podem ser ignorados na análise da esquerda para lá destas eleições. Desde que Portugal saiu do programa de ajustamento da Troika, o modelo de crescimento do país e a recuperação do nível de emprego estiveram sobretudo assentes na expansão de setores de baixo valor acrescentado, como o turismo. Este modelo pode gerar ganhos no curto prazo, mas tem problemas de fundo: os baixos salários e a precariedade em que assentam o turismo e os serviços associados.

Este processo não foi independente das opções governativas. A expansão do turismo foi potenciada por uma série de políticas destinadas a atrair o investimento estrangeiro, entre vistos gold, benefícios fiscais do regime de residentes não habituais e benefícios fiscais a fundos de investimento, além da liberalização do mercado de arrendamento. Com o aumento expressivo da procura externa, os preços da habitação cresceram muito acima dos salários de quem trabalha no país.

A monocultura do turismo e do imobiliário criou emprego e ajudou a mascarar a fragilidade da economia, mas traduziu-se no fraco crescimento dos salários, num elevado peso da precariedade e numa crise da habitação que agravou o custo de vida para muitas pessoas. Ao contrário do que o PS procurou transmitir, na última década não houve nenhum milagre económico no país.

Além disso, uma década de sub-investimento crónico nos serviços públicos, com sucessivos anúncios que nunca saíram do papel, descredibilizou a atuação do Estado. É difícil convencer as pessoas de que as propostas da esquerda para o SNS ou os transportes públicos são viáveis quando a prática dos últimos governos lhes sugere que as promessas não se concretizam. A responsabilidade do PS neste processo de descredibilização do investimento público é evidente.

Isso leva-nos ao terceiro argumento referido acima: o de que os resultados de BE e PCP os tornam obsoletos, sobretudo por oposição ao Livre. Passando à frente o facto de a política ultrapassar largamente os trabalhos parlamentares e a importância da implantação que ambos os partidos têm nos sindicatos e nos movimentos sociais, há outros motivos para desconfiar desta conclusão. Nas zonas em que se concentram os excluídos deste modelo económico – periferia das áreas metropolitanas, para onde são empurrados todos os que não conseguem pagar uma casa na cidade onde trabalham, e o Algarve ou o litoral alentejano, onde os efeitos perversos da expansão do turismo são mais notórios – o Bloco obteve alguns dos seus melhores resultados.

Há razões programáticas que podem explicar esta tendência. Uma análise aos programas dos partidos permite-nos perceber que há semelhanças e diferenças importantes nas propostas. O caso da habitação é talvez o exemplo mais paradigmático. BE, PCP e Livre convergem quanto à necessidade de acabar com os benefícios fiscais para fundos imobiliários e com a necessidade de promover a construção e reabilitação pública para aumentar a oferta a custos acessíveis. No entanto, também há diferenças substanciais: BE e PCP defendem limitações à procura externa (seja de fundos imobiliários ou não-residentes que procuram casas para especular) e restrições ao Alojamento Local ou a novos empreendimentos turísticos em zonas de pressão habitacional, ao passo que Livre e PS não o fazem e optam por defender que o Estado ofereça garantias aos bancos ou financie uma parte do valor de compra das casas.

Esta diferença parece revelar uma tentativa de responder à crise da habitação sem enfrentar os interesses dos proprietários. Foi esse, de resto, a orientação da maioria absoluta do PS com o programa “Mais Habitação” (analisado pela Ana Santos aqui e pelo República dos Pijamas aqui). No entanto, dificilmente se combate a crise da habitação sem limitar de forma séria a procura externa especulativa e a expansão desenfreada do turismo que fizeram com que os preços disparassem. A verdade é que muitos dos problemas que enfrentamos são problemas de distribuição desigual dos recursos. E o combate às desigualdades – nos salários, no acesso à habitação e noutros campos – exige que se escolham lados.

É provável que a tendência para evitar estes conflitos e a abertura para negociar revisões constitucionais com PSD e IL (sem que se saiba que áreas seriam revistas e com que objetivo) tenham rendido ao Livre muitos votos ao centro e à direita, podendo ajudar a explicar uma parte significativa do seu crescimento em Lisboa e no Porto num contexto o PS sofreu um forte desgaste e em que a IL perdeu votos na capital. Também é bastante provável que esta não seja a fórmula para travar o crescimento da extrema-direita, porque não se dirige ao seu eleitorado. Mesmo com toda a reflexão e autocrítica necessárias, a importância da esquerda nunca foi tão grande.

Regressados da campanha


Domingo à noite. Luís Marques Mendes já está de novo em campanha, na SIC, sem contraditório. Na TVI Paulo Portas, também já de regresso da campanha e igualmente sem contraditório. Tudo como dantes, no quartel de Abrantes.

domingo, 17 de março de 2024

Da miséria do «jornalismo» dominante


A questão é mais que superficial, quase nem chegando a ser um fait-divers. Mas ao mesmo tempo é bem ilustrativa do jornalixo que temos, e que tem entre os seus desportos favoritos a campanha constante de descredibilização das instituições, e muito em particular do Governo. O «"jornalismo" politizado» a que se referia Pacheco Pereira no Público de ontem, «que começa de manhã, depois circula o dia todo nas rádios e televisões e, por muito que isso indigne os próprios, é hoje maioritariamente, e muito, de direita».

Sim, o jornalismo que, nos últimos anos, como assinala Pacheco Pereira, recorreu muitas vezes a «casos pontuais para “alimentar”, dia após dia, a ideia da “crise”, mesmo quando «as estatísticas mais sólidas [não] confirmavam a [sua] agudeza». O jornalismo em que esteve «sempre presente a ideia, às claras ou subliminar, de que a “crise” se devia à “ideologia estatista” contra os privados», em que «muitos dados pertinentes, como seja a comparação entre os tempos de espera dos hospitais privados e os públicos, nunca tiveram nenhum papel na “informação”».

O caso é ridículo, mas ilustrativo. Numa notícia sobre o novo Cartão do Cidadão, Rodrigues Guedes de Carvalho (ver aqui), esperto até dizer chega, faz notar que a foto escolhida para ilustrar o novo cartão é o de uma mulher com aspeto jovem, mas com 74 anos, considerando a data de nascimento (1950). «Bastava ter um nadinha de atenção antes de enviar a imagem», diz Guedes de Carvalho, acrescentando que «todos gostaríamos de saber o segredo da juventude», antes de se referir às novidades que traz o novo cartão, «além de fazer boas cirurgias plásticas».

E pronto, o número de demonstração da incompetência, no denegrir como forma de vida e atitude profissional, está feito. Nem lhe terá passado pela cabeça contactar o Ministério da Justiça para obter esclarecimentos, podendo ter como resposta que a incongruência era intencional, para que se percebesse que o cartão não se referia a nenhuma pessoa real (porque se assim fosse haveria igualmente polémica, por se exporem os dados de alguém que existe). Como não o refere, supomos que não terá perguntado, nem sequer pensado nisso. Mas não importa, o objetivo não é propriamente informar, pois não?

Estudar e conversar


O termo neoliberalismo tornou-se uma presença regular no debate político ao longo das últimas décadas e tem sido igualmente utilizado em vários trabalhos de História e de Ciências Sociais. Este seminário procura proporcionar um lugar de aprofundamento da investigação em torno do neoliberalismo contando com 5 aulas e 1 conversa com investigadores cujo trabalho reflete sobre o neoliberalismo a partir de diferentes campos de estudo.

Depois de um seminário sobre Toni Negri onde aprendi muito, volto à Biblioteca Nacional de Portugal para um seminário sobre como estudar o neoliberalismo: amanhã, 18 de março, entre as 9h45m e as 18h. Trocaremos umas ideias sobre os assuntos com Pierre Dardot. Apareçam, a entrada é livre.

sábado, 16 de março de 2024

Recursos socialistas


Como o real propósito do socialismo é precisamente superar e avançar a fase predatória do desenvolvimento humano, a ciência econômica em seu estado atual pode jogar pouca luz na sociedade socialista do futuro (...) Eu considero esta deterioração dos indivíduos o pior mal do capitalismo. Todo o nosso sistema educacional sofre deste mal. Uma atitude competitiva exagerada é inculcada no estudante, que é treinado para idolatrar o sucesso adquirido como uma preparação para sua futura carreira.

Albert Einstein, Por que o socialismo, Jacobina

Para assinalar o aniversário de Albert Einstein, a imprescindível revista brasileira Jacobina lembrou o seu artigo sobre o socialismo, publicado no primeiro número de uma das mais importantes revistas marxistas, a Monthly Review. Foi fundada, entre outros, pelo economista Paul Sweezy, do capital monopolista à análise pioneira da financeirização do capitalismo. Imagino as conversas entre estes dois em 1949.  

sexta-feira, 15 de março de 2024

Vende-pátrias


A Eletricidade de Portugal (EDP) foi uma empresa pública criada em 1976 pelo Estado democrático, integrando numa única entidade as empresas deste setor que haviam sido nacionalizadas em 1975. Toda as atividades, da produção à infraestrutura, passaram a ser controladas por um Estado que levou a luz a todo o país. 

Desgraçadamente, a EDP foi desintegrada e privatizada, num contexto de economia política crescentemente pós-democrática, entre 1997 e 2012. Há iniciativas liberais até dizer chega, portanto, desde os anos 1990. Lembro-me de um secretário de Estado da Indústria do PS que, na segunda metade dos anos 1990, declarava abrir uma garrafa de champanhe por cada empresa que privatizava. O PS privatizou mais do que o PSD, lembremo-lo. 

A República Popular da China nunca privatizou este setor estratégico, que permanece nas mãos do Estado, mas tem aproveitado a política irresponsável de países como Portugal, passando a controlar empresas na área da energia. Os chineses estudaram bem os hábitos da elite do atraso nacional e cooptam-na com avultados rendimentos, comprando a sua agenda de contactos. Agora, chegou a vez de António Lobo Xavier, na mesma semana em que sabemos que o P de Portugal pode cair: vende-pátrias.

Assumir os programas, respeitar as escolhas


«Não vale mesmo a pena esperar que haja partidos à esquerda, inclusive o PS, que viabilizem o orçamento do PSD. E não tem só a ver com a questão do Pedro Nuno Santos, com o facto de ter um líder mais à esquerda. Qualquer líder do PS, que tenha um mínimo de respeito pelo Programa do PS, pode votar ao lado do PSD em várias coisas, muitas coisas. (…) Mas há coisas que são muito diferentes mesmo. Seja no que respeita à política de saúde, à política de educação, ou à questão fiscal – que num orçamento é crucial – as medidas são mesmo muito diferentes. E mais, o PSD não vai para o governo sozinho, vai com o CDS e vai com a Iniciativa Liberal (IL). E quando chegamos à IL, qualquer proposta que a IL aceite do ponto de vista orçamental é incompatível – não com o PCP, com o Bloco ou o PS – é com o próprio Livre.
(...) A esquerda e direita não é uma mania. Esquerda e direita não é uma coisa que as pessoas dizem porque têm necessidade de ter pertenças identitárias. Vamos lá olhar, em concreto, para aquilo que são os programas. O programa fiscal da AD, sendo o mais moderado à direita, é, em todos os casos, um programa regressivo do ponto de vista da evolução do sistema fiscal. Os programas de todos os partidos de esquerda, do PS ao Livre, passando pelo Bloco e pelo PCP, do ponto de vista fiscal, aumentam a progressividade. Todos os da direita aumentam a regressividade. Para quem não sabe o que é isto, significa que todos os partidos de direita defendem uma evolução fiscal que diminui impostos sobre os mais ricos ou sobre quem tem mais lucros, e todos os programas da esquerda resistem à diminuição de impostos sobre quem tem mais lucros e aumentam os impostos a quem é mais rico. Todos.
Em relação à habitação, todos os programas da direita dizem que a solução para os problemas da habitação em Portugal é desregulamentar, reduzir a fiscalidade sobre tudo o que tem a ver com o imobiliário e com a construção e criar PPP para a habitação. Todos os partidos da esquerda, todos sem exceção, dizem que a solução é limitar a atualização das rendas, cortes nos benefícios fiscais ao imobiliário, ao alojamento local e aos residentes não habituais e um investimento na habitação pública. O contrário do que dizem os programas da direita. Na saúde, todos os partidos da direita, todos sem exceção – AD, Chega, IL – dizem que é preciso mais recursos para os serviços privados da saúde e mais PPP. Todos os programas da esquerda dizem que é preciso reduzir a externalização das atividades do Serviço Nacional de Saúde para os privados, e todos dizem que a resposta passa pela revisão das carreiras e pela valorização salarial dos profissionais de saúde.
(…) Não há partido nenhum, espero eu, que, à esquerda e à direita, não seja capaz de, quando há problemas que têm que ser resolvidos, os resolver. Agora, nós não podemos inventar aqui falsos acordos. Para mim seria um choque que partidos que se apresentam a eleições com os programas que eu acabei de descrever, quando chegasse o momento de tomar decisões, que são fundamentais para a nossa vida coletiva – e que têm que ver com visões diferentes sobre como se governa o país – de repente dissessem eu vou fazer uma coisa diferente daquilo que eu propus.
»

Ricardo Paes Mamede, na última edição do «Tudo é Economia» (RTP3), que vale a pena ver na íntegra.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Testemunho


O meu filho nasceu em 2011, no ano inicial da agressão da troika. Ainda bebé, levei-o a manifestações desse período de luta contra a política dos vende-pátrias. Por isso, e por muito mais, estou totalmente solidário com a mãe denunciada à CPCJ por agentes da PSP incompetentes, no mínimo. Espero que a mãe coragem lhes assoe o nariz. Alfredo Cunha imortalizou, em 1975, esta mãe coragem. Não temos medo, não passarão.

Crise do jornalismo, défice de pluralismo

O Vicente Ferreira já o disse aqui, na manifestação de solidariedade do Ladrões com a Greve Geral dos Jornalistas, que tem hoje lugar: «a degradação da qualidade do jornalismo nos últimos tempos ocorre em simultâneo com a degradação das condições de trabalho no meio». De facto, o défice de pluralismo no debate político e político-económico, que começou a tornar-se mais evidente e percetível na antecâmara da «vinda da troika» - mentalizando e forçando, sem contraditório, a ideia da sua virtude e inevitabilidade, junto da opinião pública - é um reflexo óbvio da crise do jornalismo, que não é de hoje.

A questão é mesmo muito séria e não devia ser objeto de desvalorizações sonsas, que indiciam pretender-se apenas a manutenção do status quo. A ausência de pluralismo no debate, sobretudo nas televisões (mas não só), constitui um entorse grave da nossa vida democrática, ao impedir o vital confronto entre diferentes perspetivas e ao impor, pelo desequilíbrio e défice de contraditório, a prevalência de determinadas visões em detrimento de outras, condicionando e limitando seriamente a formação de opinião. A composição dos painéis de debate das últimas legislativas é só o exemplo mais recente deste inaceitável enviesamento (ver por exemplo aqui, aqui ou aqui).


Não se trata apenas de «perceções», como se pretende fazer crer. Apesar da muito insuficiente monitorização, desde logo pela ERC, vão surgindo alguns dados concretos, como os recentemente divulgados pelo MediaLab, do ISCTE. Dados que evidenciam não só a prevalência da direita no comentário televisivo (ver gráfico), mas também o reforço desse desequilíbrio quando se compara o mapeamento de 2022 com o de 2016 (com os comentadores de direita a passar de 51% para 60%). Ao arrepio, como se não bastasse, da representação da esquerda e da direita no parlamento.

É também por isto, pela existência de um verdadeiro pluralismo no debate e garantia de contraditório - a par das justas reivindicações dos jornalistas - que a greve que hoje decorre assume a maior importância para a nossa democracia. E mais ainda quando estamos, em 2024, a celebrar os 50 anos do 25 de Abril.

Resultados


Sou professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) desde 2014 e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) desde 2010. É a faculdade que me paga o salário e é no âmbito do CES que desenvolvo a minha investigação, parte dos deveres de docente universitário. 

Os investigadores do CES que são seus assalariados desempenham, no âmbito do que está estipulado nos seus contratos, funções de docência, mas só em programas doutorais das faculdades da Universidade de Coimbra, da FEUC à Faculdade de Letras. Enquanto professor, leciono a licenciaturas, mestrados e doutoramentos. 

Creio que este esclarecimento pessoal e institucional é útil, porque há alguma confusão por aí. 

Como toda a gente, tomei ontem conhecimento do relatório final, resultado de um aturado trabalho de meses por parte da Comissão Independente, composta por pessoas reputadas exteriores ao CES. Como investigador do CES, tive a oportunidade de participar na sua apresentação e de aí intervir. Basicamente, saudei o que me pareceu ser a imparcialidade, a integridade e a sensibilidade da referida Comissão. Os seus resultados são claros. Saudei também a Carta Aberta da Direção e da Presidência do Conselho Científico do CES

As outras instituições de ciência e ensino superior devem olhar bem para a forma, exemplar e até de certa forma inédita, como a instituição está a lidar com estes “indícios de ‘padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES’”. Todos sabemos que todos sabemos o que anda por aí. É que a precariedade da universidade neoliberal é mais forte do que os avanços inequívocos nas questões de género. As relações de classe contam mais, afinal de contas, também para as relações de género.

Solidários


quarta-feira, 13 de março de 2024

Luzes e sombras


Se as direitas funcionam por incessante repetição e se têm a hegemonia, então é caso para dizer que há algo a aprender com tal modo de operar. Deve reter-se uma formulação de um estratega de George Bush, lida há uns anos na repetitiva The Economist, e trazida para aqui de memória: “repetir, repetir, repetir sempre, e é só quando se está farto de repetir que o público começa a prestar atenção pela primeira vez”. 

Então aqui vai uma repetição: IL e Chega são duas faces da mesma má moeda, emitida pelas frações mais reacionárias do capital, em particular o que é grande, e colocada em circulação pelo Governo da troika, em geral, e pelo neoliberal Passos Coelho, em particular. O fascismo chega sempre pela mão política do capital e dos seus intelectuais orgânicos bem financiados, ajudado pelas fraturas sociais geradas pelo liberalismo económico. Jaime Nogueira Pinto até é um intelectual que financia, fazendo ligações. 

Temos então sempre de distinguir entre a nova/velha elite da extrema-direita – Venturas, Nogueiras Pintos, Pintos Pereiras, Bonifácios, Marchis, Mithás Ribeiros (todos doutorados, note-se) – e uma massa popular variada, que em certas circunstâncias a pode apoiar. A primeira combate-se sem quartel, a segunda reconquista-se. Está distinção luminosa, oriunda da tradição antifascista, passou, e com distinção, vários testes da história mais negra.

Solidariedade com a greve de jornalistas


Pela primeira vez em 40 anos, as e os jornalistas farão greve amanhã. Não faltam motivos para essa mobilização. A degradação da qualidade do jornalismo nos últimos tempos ocorre em simultâneo com a degradação das condições de trabalho no meio: cerca de um terço dos jornalistas recebe entre €701 e €1000 líquidos por mês, metade diz sentir-se inseguro com a sua condição laboral e há registo de elevados níveis de esgotamento. Como em tantos outros setores, a precariedade e os baixos salários minam a qualidade do jornalismo, colocando em causa as suas funções de informação e escrutínio rigorosos, indispensáveis à democracia.

No site do Sindicato dos Jornalistas, pode ler-se o apelo à mobilização:

«Há mais de 40 anos que não fazemos greve. Nestas quatro décadas, perdemos direitos, perdemos espaço, perdemos autonomia. Há um momento em que temos de fincar o pé. Esse momento chegou. É aqui e agora. A 14 de março, paramos. Junta-te à greve!

Exigimos condições salariais e editoriais, contratos de trabalho estáveis, o aumento geral dos salários e o pagamento digno das horas extraordinárias e das compensações por penosidade: trabalho noturno, fins de semana, subsídio por isenção de horário. O mínimo é que nos paguem de forma digna para exercer uma profissão que não tem hora marcada. Por mais que se goste do que se faz, o romantismo não paga contas.

Exigimos ainda intervenção pública. Portugal não pode manter-se como a exceção europeia em que o Estado nada faz pela sustentabilidade do jornalismo, nada contribui para a pluralidade democrática. Exigimos que o Estado assuma as suas responsabilidades, faça condizer o seu investimento com a importância da informação como bem público constitucionalmente consagrado.»

O Ladrões de Bicicletas solidariza-se com esta greve por jornalistas livres em defesa da democracia.

terça-feira, 12 de março de 2024

Amarrações


Pedir ao PS que viabilize a governação de direita faz hoje tanto sentido como ter pedido, durante a campanha, aos liberais do PSD e da IL que abdicassem dos seus programas e votassem PS, para defender o Estado Social e não se perder a estabilidade política de que o país dispunha.

O Chega cresceu porque somos um país racista?

É errado associar aos resultados obtidos pelo Chega um significado racista, como sugere o gráfico de um inquérito que circula por aí, e a que cheguei através de Pedro Sales, nos termos do qual cerca de 53% dos portugueses acreditam que há «raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes e/ou menos trabalhadores» (racismo biológico), e cerca de 54% acreditam que «há culturas muito melhores que outras» (racismo cultural).

Se assim fosse, importaria desde logo perguntar porque razão o Chega obteve uma percentagem de apenas 7% há dois anos atrás, nas Legislativas de 2022, tendo agora disparado para 18%, quadriplicando a sua representação parlamentar. Ou perguntar, também, porque é que, se somos um país de racistas, os partidos de extrema-direita (como o PNR/Ergue-te), nunca conseguiram eleger nenhum deputado, sendo a sua votação sistematicamente inexpressiva em 50 anos de democracia.

Em segundo lugar, como poderíamos conciliar essa ideia de «Portugal, país racista», com diversos indicadores que nos destacam, à escala europeia e não só, como um dos países mais recetivos à imigração, como demonstra, em termos comparativos, a baixa percentagem de população que a considera um problema, em contraste com a população que a encara como uma oportunidade?


Não descurando que o discurso do Chega é atrativo para o residual eleitorado xenófobo e saudosista do Estado Novo (sempre o foi), nem o recurso às novas formas de comunicação de massas - que o Chega manipula de forma exímia -, ou a ajuda que «chega sempre pela mão do capital e dos seus intelectuais orgânicos bem financiados», a que o João Rodrigues aqui se referiu, é no «descontentamento» que encontramos a explicação mais plausível para a subida vertiginosa do partido de André Ventura no passado domingo. Porque não há, de facto, «18% de votantes racistas ou xenófobos em Portugal», como assinalou Pedro Nuno Santos no rescaldo da noite eleitoral.

Por arrasto


Em artigo do mês passado no Le Monde diplomatique - edição portuguesa defendi que o fascismo que vem por arrasto é objetivamente ajudado por camadas nada negligenciáveis da intelectualidade de esquerda, colonizadas por pelo menos duas hipóteses histórico-filosóficas liberais. 

Em primeiro lugar, o pessimismo antropológico performativo, criador da sua própria realidade, sobre as motivações e capacidades cognitivas dúbias das classes populares, consideradas sempre prontas a apoiar os populismos das direitas extremas. Na verdade, o fascismo chega sempre pela mão do capital e dos seus intelectuais orgânicos bem financiados. 

Em segundo lugar, e de forma mais indireta, a hipótese da ferradura, uma visão histórica distorcida: à noite, o mocho de Minerva não levanta voo e todos os “extremismos” são pardos e igualmente “totalitários”.

Com 48 cadeiras ocupadas por fascistas na AR, para 48 anos de ditadura, estas duas hipóteses vão provavelmente difundir-se ainda mais. Já há idiotas úteis a apodar o povo de estúpido e de racista, merecedor de sessões de reeducação; ou a dizer que houve sobretudo transferências de votos, que nenhuma análise séria autoriza, dos comunistas, condição necessária de um antifascismo intelectual e politicamente sério, para os fascistas. 

A nossa intelectualidade euroliberal mais ou menos televisionada, sobretudo a que se diz de esquerda, é parte do problema. Francamente, prefiro ler os intelectuais assumidamente reacionários. Pelos menos, esses defendem interesses e valores com clareza.

segunda-feira, 11 de março de 2024

O elefante começou a partir loiça

Medina disse ontem que o Ch*ga não tem capacidade de resolver problemas concretos das pessoas. Verdade. Já ele e os seus antecessores do PS, com as suas contas alegadamente certas, criando problemas de todo o género às pessoas e às pequenas e médias empresas, tiveram a arte de alienar apoio popular e facilitar o crescimento da extrema-direita. 

A verdade é que as contas certas são um logro que não resiste sequer a uma mera análise de contabilidade nacional. Os superávites do setor público não podem deixar de ser os défices do setor privado e vice-versa.
 

Não menos verdade, contudo, é que a capacidade para criar ou resolver problemas às pessoas não está essencialmente nas mãos dos governos, sobretudo os das periferias, mas sim nas instituições europeias e sobretudo no BCE. 

Repare-se, por exemplo, que, com maior ou menor intuito de o tentar, todos os partidos afirmaram no período eleitoral querer subir salários, mas a verdade é que o BCE não o permitiria. E só um partido colocou no seu programa o euro como constrangimento, infelizmente sem a ancoragem que o assunto merece. 


Também verdade é que esta abordagem das contas alegadamente certas tornou todos, excepto os bancos, mais pobres. 


O país não precisa de contas certas, mas de contas funcionais

Contas que funcionem para quem trabalha e para as empresas que beneficiam deste trabalho.

Os monstros não nascem de geração espontânea

Assistimos nos últimos anos a um aumento sem precedentes da agressividade e da desinformação no debate político, tendo as redes sociais como principal veículo. Adoptando estratégias semelhantes às que conduziram Trump e Bolsonaro ao poder, novos actores políticos – com destaque para o Chega e a IL – tornaram-se líderes das redes sociais, com dezenas de milhares de contas, reais e fictícias, a alimentar “gostos”, “partilhas” e “comentários”. Entre as camadas mais jovens, o Instagram, o Twitter/X e o TikTok tornaram-se as principais fontes de “informação”. Nesses meios, o debate político faz-se mais com dados parciais e distorcidos, do que com rigor e confronto honesto de ideias. O objectivo era alimentar a indignação, mais ou menos justificada, direccionando-a contra os adversários políticos, em particular o PS.

O sucesso dos novos actores nesta nova era da crispação política não se deve apenas ao seu despudor e criatividade. Deve-se também aos apoios financeiros que recebem. Apesar de terem estruturas partidárias modestas, Chega e IL mobilizam recursos próprios (isto é, excluindo a subvenção estatal) que excedem em muito os dos partidos maiores. Segundo o próprio Chega, mais de metade das suas receitas de campanha (400 mil euros) têm origem em doações, um valor sem paralelo no quadro partidário português. No caso da IL, boa parte da propaganda liberal nas redes é deixada a cargo do Instituto +Liberdade, que recebe por ano acima de 500 mil euros em donativos.

A generosidade com que pessoas e instituições endinheiradas financiam organizações políticas que apostam na crispação, sugere que uma parte dos ricos em Portugal já não tolera as opções de quem governou o país nos últimos anos, por muito moderadas que fossem. Não há aqui nada de novo: quando acham que a democracia lhes retira privilégios – sob a forma de impostos ou de direitos laborais que consideram excessivos –, alguns poderosos financiam o caos, dando poder a quem oferece ordem e “moderação”. Esperam com isso manter os seus benefícios. O problema, como a história mostrou muitas vezes, é que se arriscam a perder o controlo sobre o monstro que criaram.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

Precisamos de refletir


1.
Precisamos de humor e de ironia que corroam sistemas: daquela “equipa fantástica” fizeram parte as sociedades indigentes de comunicação, as que promoveram a extrema-direita, subproduto do neoliberalismo, sem o qual de resto nunca teriam existido. 

2. Precisamos de ter os olhos bem abertos: sociedades indigentes há muitas e os milionários, alimentados por uma forma de economia política neoliberal com décadas, têm cada vez maior capacidade de converter dinheiro em poder político, pagando “stink-thanks”, financiando as direitas cada vez mais extremadas, controlando cada vez mais aparelhos ideológicos. 

3. Precisamos de cultura com fôlego, como no antifascismo histórico, que “ganhe raízes no solo pátrio”, que imagine com luminosidade uma comunidade e o seu povo, que ame essa comunidade e o seu povo solar. 

4. Precisamos de economia política que vá à raiz, que parta do Algarve e que suba por aí acima, que exponha um modelo de desenvolvimento do subdesenvolvimento e o seu círculo vicioso: baixa pressão salarial e austeridade, subinvestimento modernizador, alimentação de fluxos migratórios súbitos, serviços públicos subfinanciados e sobrecarregados, rentismo fundiário e corrupção, ascensão da extrema-direita. 

5. Precisamos de economia moral, ponto de intersecção da tal cultura com fôlego e da economia política radical, ou seja, de um modelo de desenvolvimento, feito por propostas de política, por instrumentos de política soberana a resgatar, que dêem os toques certos e com impactos sistémicos, contando uma história moral de um país plausível. 

6. Precisamos de mais e melhor organização, do YouTube ao sindicato, feita por militantes, ao invés de ativistas, solidária e acolhedora, sabendo sempre que as pessoas só se mobilizam por uma certa ideia esperançosa de Portugal.

domingo, 10 de março de 2024

Em dia de reflexão


Foi interessante, intrigante até, o discurso de ontem do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em dia de reflexão. Sobretudo a parte em que fala do «fim de ciclo» a propósito da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril. «Fecha-se um ciclo de meio século da nossa história, e abre-se outro», disse Marcelo, em dia de reflexão.

Só foi pena que não tivesse desenvolvido mais esta tese, pois deixa muitas perguntas em aberto. Porque é que, por exemplo, o primeiro ciclo do 25 de Abril se fecha aos 50 anos e não aos 45 ou 60 anos após 1974? É uma espécie de duração natural dos ciclos, instrínseca, que se cumpre? E o que diferencia o primeiro ciclo, que agora termina - assegurou-nos o Presidente da República em dia de reflexão - do segundo ciclo que agora começa? O que muda, o que distingue estes dois ciclos? Este segundo ciclo, também terá 50 anos, como o primeiro? Última questão: porque será que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não guardou esta reflexão para o seu discurso no dia 25 de Abril de 2024, preferindo partilhá-la a 9 de março de 2024, dia de reflexão?